A geração tolerância
Os adolescentes e jovens brasileiros começam a vencer o arraigado preconceito contra os homossexuais, e nunca foi tão natural ser diferente quanto agora. É uma conquista da juventude que deveria servir de lição para muitos adultos
Da Veja on line
UMA TURMA COLORIDA
Paulo, William, Marcus, David, Charles, Akira, Jefferson (de pé, da esq. para a dir.); e Harumi e Daniele (sentadas): eles abriram o jogo para os pais ainda na adolescência Harumi Nakasone, 20 anos, estudante de artes visuais em Campinas.
Apresentar boletim escolar com notas ruins, bater o carro novo da casa, arrumar inimizade com o vizinho já são situações difíceis de enfrentar diante do tribunal familiar, com aquela atemorizante combinação de intimidade com autoridade dos pais. Imagine parar ali diante deles e dizer a frase: "Eu sou gay". Não é fácil para quem fala, menos ainda para quem ouve. As mães se assustam, mas logo o amor materno supera o choque do novo. Os pais demoram mais a metabolizar a novidade. A orientação sexual ainda é e vai ser por muito tempo uma questão complexa e tensa no seio das famílias. Isso muda muito lentamente. O que mudou muito rapidamente, porém, foi a maneira como a homossexualidade é encarada por adolescentes e jovens no Brasil. Declarar-se gay em uma turma ou no colégio de uma grande cidade brasileira deixou de ser uma condenação ao banimento ou às gozações eternas. A rapaziada está imprimindo um alto grau de tolerância a suas relações, a um ponto em que nada é mais feio do que demonstrar preconceito contra pessoas de raças, religiões ou orientações sexuais diferentes das da maioria.
Esses meninos e meninas estão desfrutando uma convivência mais leve justamente em uma fase da vida de muitas incertezas, quando a aceitação pelos pares é decisiva para a saúde emocional e mental. Isso é um avanço notável. Por essa razão talvez, a idade em que um jovem acredita que definiu sua preferência sexual tem caído. Uma pesquisa feita pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e de Campinas (Unicamp) tem os números: aos 18 anos, 95% dos jovens já se declararam gays. A maior parte, aos 16. Na geração exatamente anterior, a revelação pública da homossexualidade ocorria em torno dos 21 anos, de acordo com a maior compilação de estudos já feita sobre o assunto. À frente do levantamento, o psicólogo americano Ritch Savin-Williams, autor do livro The New Gay Teenager (O Novo Adolescente Gay), resumiu a VEJA: "O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural". Os jovens que aparecem nas páginas desta reportagem, que em nenhum instante cogitaram esconder o nome ou o rosto, são o retrato de uma geração para a qual não faz mais sentido enfurnar-se em boates GLS (sigla para gays, lésbicas e simpatizantes) - muito menos juntar-se a organizações de defesa de uma causa que, na realidade, não veem mais como sua. Na última parada gay de São Paulo, a maior do mundo, a esmagadora maioria dos participantes até 18 anos diz estar ali apenas para "se divertir e paquerar" (na faixa dos 30 o objetivo número 1 é "militar"). A questão central é que eles simplesmente deixaram de se entender como um grupo. São, sim, gays, mas essa é apenas uma de suas inúmeras singularidades - e não aquela que os define no mundo, como antes. Explica o sociólogo Carlos Martins: "Os jovens nunca se viram às voltas com tantas identidades. Para eles, ficar reafirmando o rótulo gay não só perdeu a razão de ser como soa antiquado". Ícone desses meninos e meninas, a cantora americana Lady Gaga os fascina justamente por ser "difícil de definir o que ela é". São marcas de uma geração que, não há dúvida, é bem menos dada a estereótipos do que aquela que a precedeu. Diz, com a firmeza típica de seus pares, a estudante paulista Harumi Nakasone, 20 anos: "Nunca fiz o tipo masculino nem quis chocar ninguém com cenas de homossexualidade. Basta que esteja em paz e feliz com a minha opção".
A tolerância às diferenças, antes verificada apenas no ambiente de vanguardas e nas rodas intelectuais e artísticas, está se tornando uma regra - especialmente entre os escolarizados das grandes cidades brasileiras. Uma comparação entre duas pesquisas nacionais, distantes quase duas décadas no tempo, dá uma ideia do avanço quanto à aceitação dos homossexuais no país. Em 1993, uma aferição do Ibope cravou um número assustador: quase 60% dos brasileiros assumiam, sem rodeios, rejeitar os gays. Hoje, o mesmo porcentual declara achar a homossexualidade "natural", segundo um novo levantamento com 1 500 adolescentes de onze regiões metropolitanas, encabeçado pelo instituto TNS Research International. O mesmo estudo dá outras mostras de como a maior parte dos jovens brasileiros já se conduz pela tolerância em vários campos: 89% acham que homens e mulheres têm exatamente os mesmos direitos e em torno de 80% se casariam com alguém de outra raça ou religião. "À medida que as pessoas se educam e se informam, a tendência é que se tornem também mais intransigentes com o preconceito e encarem as questões à luz de uma visão menos dogmática", diz a psicóloga Lulli Milman, da Uerj. Foi o que já ocorreu em países de alto IDH, como Holanda, Bélgica e Dinamarca. Lá, isso se refletiu em avanços na legislação: casamentos gays e adoção de crianças por parte desses casais são aceitos há anos. No Brasil, onde não há leis nacionais como essas, a apreciação fica sujeita a cada tribunal.
Ainda que o preconceito persista em alguns círculos, atingiu-se um estágio de evolução em que professá-lo se tornou um gesto condenável pela maioria - um sinal de progresso no Brasil. Nas Forças Armadas, onde a aversão a gays sempre se pronunciou em grau máximo (apesar de o regimento interno repudiar a perseguição aos homossexuais), a diferença é que, agora, quando surge um caso desses entre os muros do Exército, o assunto logo suscita indignação. Ocorreu com um general que, neste ano, veio a público posicionar-se contra a presença de gays nas Forças Armadas. Sob pressão, precisou retratar-se. Recentemente, o lutador de vale-tudo Marcelo Dourado, 38 anos, surgiu no programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, dizendo que "homem hétero não pega aids". Além de uma bobagem, a declaração foi tachada de preconceituosa - e a Globo precisou ocupar seu horário nobre com as explicações do Ministério da Saúde sobre o tema. Mesmo que às vezes usados como bandeira por bandos de militantes paparicados por políticos em busca de votos, pode-se dizer que tais episódios apontam para uma direção positiva. Afirma o filósofo Roberto Romano: "A experiência mostra que o desconforto com o preconceito cria um ambiente propício para que ele vá sendo exterminado".
A notícia de que um filho é homossexual continua a causar a dor da decepção a pais e mães (descrita pela maioria dos ouvidos por VEJA como "a pior de toda a vida"). Com pavor de uma reação violenta do pai, meninos e meninas preferem, em geral, contar primeiro à mãe. "Quando meu filho me disse que gostava de meninos, sabia que os velhos sonhos teriam de ser substituídos por algo que eu não tinha a menor ideia do que seria", relata a analista financeira paulista Suerda Reder, 41 anos. É com o tempo que a vida vai sendo reconstruída sob novas expectativas. Dois anos depois da revelação, o namorado de Victor, filho de Suerda, frequenta sua casa sem que isso seja motivo de constrangimento. Muitos pais já compreendem (com algumas idas e vindas) que, ao apoiar os filhos, estão lhes prestando ajuda decisiva. "Quando a própria mãe trata o fato com naturalidade, a tendência é que o preconceito em relação a ele diminua", diz a estilista gaúcha Ana Maria Konrath, 55 anos, em coro com uma nova geração de mães - também mais tolerantes. O que elas sabem por experiência a ciência em parte já investigou. Segundo um estudo americano, conduzido pela Universidade Estadual de São Francisco, jovens gays que convivem em harmonia com os pais raramente sofrem de depressão, doença comum entre vítimas de preconceito.
Um conjunto de fatores ajuda a explicar o fato de a atual geração gay ser mais livre de amarras - alguns de ordem sociológica, outros culturais. Um ponto básico se deve à sua aceitação por outros adolescentes. Para esses jovens, o conceito de tribo perdeu o valor, como chamou atenção o antropólogo americano Ted Polhemus, por meio de suas pesquisas. Ele apelidou essa geração de "supermercado de estilos" - ou só "sem rótulos". Nesse contexto, não há mais lugar para algo como o grupo em que apenas ingressam os gays ou os negros, algo que as escolas brasileiras já ecoam. Antes fonte de tormento para alunos homossexuais, alvo de piadas, quando não de surras e linchamentos, o colégio se tornou um desses lugares onde, de modo geral, impera a boa convivência com os gays. Um sinal disso é que a ocorrência de casos de bullying por esse motivo tem caído gradativamente. "É também mais comum que eles andem de mãos dadas no recreio, sem ser importunados, ou que se tornem líderes de turma", conta a pedagoga Rita de Cássia, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Os próprios colégios reconhecem que, no passado, conduziam a questão à sombra de certo preconceito. "Se surgia um aluno gay, tratava-se imediatamente o assunto como um problema, e os pais eram logo chamados", lembra Vera Malato, orientadora no Colégio Bandeirantes, em São Paulo. "Hoje a postura é apenas dar orientação ao aluno se for preciso."
Para boa parte dos jovens gays de hoje, a vida subterrânea nunca fez sentido. Diz o produtor de moda carioca Victor Guedes, 19 anos: "Desde que ficou claro para mim que meu interesse era pelo sexo masculino, não pensei em esconder isso dos meus pais. Só esperei a hora certa para abrir o jogo, com todo o tato". É gritante o contraste com as gerações anteriores, às quais lança luz o livro Cuidado! Seu Príncipe Pode Ser uma Cinderela (a ser lançado pela editora Best Seller), das jornalistas Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo. O conjunto de depoimentos ali reunido revela o sofrimento diário enfrentado por políticos, diplomatas e figurões do mercado financeiro que nunca saíram do armário.
Ao longo da última década, a indústria do entretenimento tem refletido, de forma acentuada, as mudanças culturais em relação à sexualidade. Na televisão, nunca houve tantas séries retratando o universo gay. Entre as produções de maior sucesso, figuram o seriado americano Glee, que tem como um dos protagonistas um adolescente recém-assumido gay para o pai, e The L Word, sobre um grupo de lésbicas atraentes e chiques de Los Angeles. Nas novelas brasileiras, os homossexuais já não são mais tratados de maneira tão caricatural. "É possível exibir na TV a vida comum de casais gays sem que isso provoque a rejeição do público, como no passado. Hoje, esses personagens fazem o maior sucesso", analisa Manoel Carlos, autor da atual novela das 8, Viver a Vida. Isso não só ajuda a levantar o diálogo sobre a homossexualidade em casa como ainda minimiza a resistência a ela. O rol de celebridades que se assumem gays também cumpre, em certo grau, esse papel. O último a deixar o armário foi o cantor porto-riquenho Ricky Martin, autor do sucesso Livin’ la Vida Loca, que, aos 38 anos, declarou ser gay em tom profético: "Hoje aceito minha homossexualidade como um presente que a vida me deu".
A atual geração jamais espera tanto. A idade precoce com que os gays trazem à tona sua orientação sexual chama a atenção dos especialistas. Aos 16 anos, estão ainda na adolescência - uma fase de experimentação e dúvidas. Pondera a doutora em psicologia Ceres Araujo: "Esperar que essa escolha seja eterna para todos é uma simplificação. O que dá para afirmar é que esses jovens têm grande propensão de seguir se relacionando com pessoas do mesmo sexo". Para eles, a homossexualidade está longe de ter a conotação negativa de tantos outros períodos da história. Durante as trevas da Inquisição, arremessavam-se os gays à fogueira. Na Inglaterra do século XIX, eles eram considerados nada menos que criminosos. Em 1895, num dos mais famosos julgamentos de todos os tempos, o escritor irlandês Oscar Wilde, homossexual assumido, foi acusado de sodomia e comportamento indecente. Penou dois anos na prisão. Na Hollywood dos anos 50, o agente do galã Rock Hudson arranjou, às pressas, um casamento de fachada para o ator, com uma secretária. Às voltas com fofocas sobre sua homossexualidade, ele corria o risco de perder contratos. Só em 1985, aos 59 anos e vitimado pela aids, doença que o mataria naquele ano, Hudson se assumiu gay. Num cenário inteiramente diferente, os novos gays não precisam mais passar por esse tormento. Resume o estudante mineiro Hector Gutierrez, 17 anos - típico da geração tolerância: "O dia em que eu contei a verdade a todos foi o primeiro em que me senti realmente livre e feliz".
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