Uma comunidade dominada pelo tráfico de crack, onde as leis são ditadas pelos traficantes. Esta é a situação da região do Rosa Elze, Rosa Maria e Eduardo Gomes, no município de São Cristóvão, distante 25 quilômetros de Aracaju. Segundo os próprios moradores, nestas localidades são 21 pontos de venda de droga. No povoado Barreiro, são outras três bocas-de-fumo. Para fazer a distribuição do crack, adolescentes estão sendo cooptados para a linha de frente do tráfico. Garotos com 16, 14 e até 12 anos atuam como “aviões”. Muitos deles, também usuários, vivem ameaçados de morte pelos gerentes das bocas, por conta de dívidas de droga.
Os populares afirmam que o mais grave é que os “donos” desses pontos de venda de droga são pessoas que deveriam estar na comunidade para garantir a segurança da população.
Informações, que estão sendo investigadas, dão conta de que o “negócio” seria comandado por policiais. Mais de perto, a atividade criminosa seria gerenciada por outras quatro pessoas, uma delas um ex-presidiário que teria matado 21 pessoas que não honraram dívidas de droga.
Sob a proteção dos proprietários dos pontos de venda e bem equipado, ele implanta o terror na comunidade, inclusive entre os adolescentes que trabalham como avião. Segundo uma moradora, que temendo represálias não quis se identificar, um garoto de 12 anos que já fugiu três vezes de internações determinadas pela Justiça, recentemente foi ao juiz do município pedir para ser internado, pois estava sendo ameaçado de morte por uma dívida de R$ 200 em droga. Há adolescentes, inclusive, que são convocados para executar devedores.
Mais vulneráveis
A situação de vulnerabilidade, a falta de perspectiva de vida e carência de relações familiares têm feito com que um número cada vez mais crescente de adolescentes se tornem dependentes do uso do crack. A droga acaba ocupando o espaço de algo que está faltando na vida do usuário. Justamente por isso, explica o coordenador do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD) de Aracaju, o psicólogo André Calazans, que o consumo de crack tem crescido mais entre o público adolescente e jovem. “Esse usuário que se envolve com o crack já poderia estar num processo de desvinculação familiar, de vulnerabilidade social e o crack só potencializa isso”, disse.
Em Aracaju, hoje, 55% das pessoas atendidas no Caps são usuárias de crack, uma realidade um pouco diferente do que era há alguns anos, quando o álcool vinha em primeiro lugar. E essa mudança pode ser percebida através do perfil das pessoas que buscam ajuda. Até 2008, a idade média do público que procurava o Caps AD era de 40 a 50 anos. Hoje, está entre os 17 e 27 anos.
Dados apresentados no início do mês, durante o lançamento da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Crack, na Câmara dos Deputados, mostraram que já existe no Brasil 1,2 milhão de usuários de crack e a idade média para o início do uso da droga é 13 anos. Em Sergipe, não há estudos atualizados sobre a quantidade de usuários de crack e perfil de clientela. Os dados que a Secretaria de Estado da Saúde (SES) dispõe são do ano de 2005, quando a taxa de incidência do uso do crack na vida era de 0,1% das pessoas entrevistadas.
Entretanto, a diretora de Atenção Psicossocial da SES, Ana Raquel Santiago de Lima, confirma que tem havido uma demanda crescente em todos os Caps – são 31 ao todo no Estado, sendo cinco especializados no atendimento de usuários de álcool e outras drogas, localizados em Aracaju, Nossa Senhora do Socorro, Lagarto e Itabaiana. Segundo Ana Raquel, em breve vai ser feito um estudo mais científico, que mostre epidemiologicamente o uso do crack em Sergipe. O trabalho será feito em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Além do levantamento, serão implantadas algumas ações, como escola de redução de danos.
Caso de saúde
Segundo o psiquiatra José Hamilton Maciel Silva Filho, o que os profissionais que lidam com o atendimento a usuários têm visto é uma demanda cada vez maior por dependência química. “Temos recebido, principalmente, adolescentes e pré-adolescentes, com idade até de oito a dez anos, já na dependência”, revelou. O médico disse que, recentemente, junto com a psiquiatra Maria Helena Ávila, participou de uma pós-graduação sobre dependência química na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pôde perceber, através do relato de profissionais de vários Estados, que este é um problema de caráter nacional e que adquiriu uma característica epidêmica, que está fora de controle. “O crack foi uma droga que veio muito rápido e apesar de ser um subproduto da cocaína as equipes não tinham se preparado para isso. Pegou todos de surpresa”, disse. Segundo o psiquiatra, hoje não existe uma estrutura hospitalar pública nem privada para adolescentes e pré-adolescentes dependentes. Para ele, esse é um problema que a sociedade vai ter que se deparar e ter que discutir para ver qual o caminho a seguir. Ele entende que esse não é só um problema de saúde, mas também de polícia, de educação e de ação social. “Tem que ser uma ação rápida e em conjunto”.
A carência de leitos na rede pública de saúde tem levado muitas vezes o Judiciário a decidir favoravelmente pelo tratamento de desintoxicação de usuários em estado crítico em estabelecimentos particulares, às custas do Estado. Esta semana, uma dessas sentenças favoráveis foi expedida pelo juiz da Comarca de São Cristóvão, Manuel Costa Neto, que concedeu tutela antecipada ao pedido feito pelo Ministério Público em favor de um adolescente, para que o mesmo fosse tratado na Fazenda Mãe Natureza, no município de Santana do São Francisco.
Em sua decisão, o juiz levou em conta os argumentos do alto grau de dependência do adolescente e a necessidade de tratamento especializado em instituição para desintoxicação com o apoio do Estado, uma vez que a família não dispõe de recursos. Em sua decisão, o magistrado observou que, quanto ao dano irreparável, “caso não haja a concessão da medida, o menor terá sua saúde comprometida, já que não resiste ao vício, vem praticando certos delitos para garantir o consumo do entorpecente, podendo chegar inclusive a óbito ante ao estado que se encontra, e a busca dos traficantes em tirar a sua vida”.
Danos físicos
Os danos causados à saúde do dependente químico são vários, ainda mais graves no caso de adolescentes e pré-adolescentes, indivíduos que ainda estão em formação. De acordo com os médicos, de todas as drogas o crack é a mais perversa por ser inalada e, assim, ir direto para o pulmão e o cérebro, tudo isso em segundos. Como seu efeito é rápido, daí a necessidade de o usuário consumir cada vez mais, para manter a sensação de prazer momentâneo. “Em menos de cinco vezes de utilização o usuário já se torna dependente e aí entra numa ciranda que não consegue parar”, disse José Hamilton Filho.
Entre os problemas causados pelo consumo excessivo de crack estão danos pulmonares e cerebrais, pois a pessoa começa a entrar em estado de estafa, pois passa dias sem se alimentar, só consumindo a droga. Segundo o psicólogo André Calazans, o crack é uma droga altamente egoísta. “Ele desestrutura todas as relações e só autoriza o usuário a se relacionar com ele. A pessoa que faz uso de crack não precisa de sexo, não precisa comer, dormir, não precisa de nada. Tudo que ele precisa está apenas num objeto: a pedra”, disse.
Algumas pesquisas apontam que em geral 30% dos usuários de crack morrem nos primeiros cinco anos de uso. “Nenhuma patologia médica mata em cinco anos em torno de 30%. Isso não ocorre apenas pelos danos à saúde, mas porque muitos são assassinados, executados por dívidas”, afirmou o psiquiatra José Hamilton, acrescentando que por conta disso o consumo de crack se tornou um problema de caráter epidêmico.
Jovens são a maioria em tratamento
A mudança no perfil dos usuários que procuram o serviço dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) Álcool e outras Drogas fez com que a metodologia de trabalho tivesse que ser repensada. Isso porque, antes, a clientela era formada por pessoas, em sua maioria, dependentes de álcool, com idade entre 40 e 50 anos, bem diferente do perfil atual, formado 55% por usuários de crack e na faixa etária dos 17 a 27 anos.
Diante disso, revelou o coordenador do Caps AD, André Calazans, as atividades desse serviço tiveram que ser mudadas. “O município de Aracaju investiu no sentido de ser mais atrativo para esses adolescentes e jovens, porque eles estão numa fase da vida em que a atratividade é um recurso importante”, disse. Hoje, boa parte dos profissionais que trabalham com os usuários é mais jovem, para que sirvam como espelho. Também houve investimento em novas oficinas e atividades, como artesanato hippie e serigrafia, jogos, além de questões teóricas na qualificação dos profissionais que lidam com o usuário do Caps. “Hoje, o Caps AD consegue ter uma adesão muito maior desses usuários, diante das atividades que desenvolvemos”, disse.
André Calazans defende que a problemática da droga seja pensada pelos serviços públicos de forma intersetorial, articulando um plano de ação integral ao usuário, envolvendo ação social, trabalho, educação e saúde, pensando na atenção integral a ele, enxergando toda sua necessidade enquanto sujeito. “É preciso oferecer condições para que ele crie mecanismos para frequentar o mesmo meio em que vive, sem fazer uso ou abuso de droga e que ele consiga fazer minimamente suas atividades cotidianas, que mantenha a sua cidadania”.
São essas ferramentas que o usuário aprende a utilizar durante o tratamento realizado nos Caps, através de um projeto terapêutico que envolve não apenas a assistência médica, psiquiátrica, psicológica, mas também com oficinas, vivências e convivência com outros usuários. “Às vezes as pessoas perguntam se o tratamento é efetivo, o que não deixa de ser. Mas ser efetivo não significa a recuperação 100% de todos. São vários os indicadores de resultados, desde a diminuição do uso, deixar de roubar ou furtar para fazer, até a abstinência”, disse Calazans, acrescentando que o objetivo do trabalho é fazer com que as pessoas voltem a ter um convívio com a família e retomem as atividades normais de sua vida.
É isso que Gildenilson Costa Barnabé, 28 anos, tem buscado fazer. Usuário de crack há um ano, ele sabe as consequências trazidas pelo uso abusivo do crack. Em pouco tempo ele viu suas relações familiares se desestruturarem. Há seis meses em tratamento no Caps AD, hoje consegue lidar melhor com o consumo da droga, uma lição que tem aprendido a cada dia. Ele disse que chegou a parar de usar crack por uns dois meses, mas quando voltou foi com tudo.
“Cheguei a morar dois meses na rua. Minha mãe procurou ajuda no Ministério Público, depois decidi vim para o Caps; aqui é um suporte para a gente aprender a viver próximo à droga. Hoje eu sei que posso até morrer usando crack, mas vou morrer tentado deixar”, disse, acrescentando que atualmente conseguiu diminuir a fissura de usar o crack consumindo a maconha.
Ministério Público em combate à droga
O Núcleo de Atenção à Infância e à Adolescência (Naia), do Ministério Público Estadual, tem acompanhado de perto o avanço do consumo de crack entre este público. O entendimento também é de que para se enfrentar a questão é necessário o envolvimento de setores como saúde, educação e assistência social. Segundo a promotora de Justiça coordenadora do Naia, Miriam Teresa Cardoso Machado, dentro do procedimento instaurado para acompanhar a questão aguarda o anúncio do plano de ações articuladas voltadas para o enfrentamento ao crack.
Paralelo a isso, a promotora informou que está sendo desenvolvido um trabalho com um grupo de profissionais de saúde para conhecer melhor a interface do crack, passando por seus componentes, efeitos, tratamento ideal, tudo com base em casos concretos. “Porque até agora não sentimos que o Ministério da Saúde ou o Estado tenham um protocolo de atendimento a esses pacientes”, disse.
Ela acrescentou que o que se vê hoje é que o paciente em casos extremos é levado para a urgência psiquiátrica, é atendido, fica no máximo até cinco dias internado para desintoxicação e depois volta para casa. “Mas nos estudos temos visto que esse período não é suficiente. O ideal seria entre oito e 30 dias. E ele volta para casa, fica mais fragilizado”, disse, ressaltando que muitas vezes mesmo sendo encaminhado para o Caps ele não consegue se fixar.
Essa semana, durante audiência realizada com instituições religiosas que desenvolvem trabalhos com adolescentes usuários de drogas, ficou pactuada a realização de um seminário sobre o crack, que será realizado nos dias 12 e 13 de agosto, provavelmente no auditório do MP.
Na oportunidade serão debatidos temas como o novo modelo familiar e social, como funciona o crack e seus efeitos, como conviver com a droga, as políticas de prevenção e intervenção, além das experiências religiosas no enfrentamento ao crack. Ao final do evento, serão elaborados dois documentos, um direcionado aos poderes públicos constituídos e outro com as diretrizes de prevenção e intervenção dos grupos religiosos para o enfrentamento do crack na nossa capital e Estado.
Governo fará campanha
No início do mês de junho, o governo do Estado estará lançando uma campanha estadual de combate ao crack. O trabalho é focado em três eixos: a prevenção, repressão e o tratamento. O projeto, de caráter intersetorial entre as várias secretarias de Estado, será aplicado inicialmente em dez municípios, selecionados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), tendo como base o índice de ocorrências ligadas ao tráfico de drogas. A princípio, o objetivo será divulgar a campanha nas escolas, buscando orientar os jovens. Mas as ações vão mais além, pois o plano contempla também aumento no número de leitos de desintoxicação e convênios com unidades que já lidam com a recuperação de usuários no Estado.
De acordo com a diretora de Atenção Psicossocial da Secretaria de Estado da Saúde, Ana Raquel Santiago de Lima, a ideia do plano é articular todas as políticas de governo para poder ofertar não apenas saúde aos usuários, mas também programas de proteção social, de educação, esporte, lazer e cultura. “A ideia é que a gente possa integrar as políticas para dar conta da demanda que vem aumentando em Sergipe”, disse.
Atualmente, o tratamento dos usuários de drogas no Estado é feito através dos 31 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), cinco deles especializados em álcool e outras drogas. Ana Raquel disse que o Estado tem feito também capacitações para qualificar cada vez mais o trabalho das equipes do Caps. “É interessante que todo profissional de saúde, não só de saúde mental, tenha um olhar para a questão da droga”, disse, acrescentando que já está sendo iniciada uma capacitação ampla com os profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF), para que eles possam entender como funciona essa demanda do uso da droga e tenha condições de acolher os pacientes.
A diretora acrescentou que os casos de usuários em estado mais crítico são atendidos na Clínica Santa Maria, que dispõe de 84 leitos de retaguarda, além da urgência de saúde mental do Hospital São José, que possui 16 leitos disponíveis. Esses dois serviços são ligados à Prefeitura de Aracaju, por estarem na capital. “Mas como o SUS é um sistema descentralizado, Aracaju assume o papel de referência estadual, por isso os serviços são geridos pelo município para atender a todo Estado”, disse. Raquel acrescentou que paralelo a isso o Estado está negociando a ampliação de leitos para que a gente consiga acolher a demanda crescente. Novidades que devem ser anunciadas durante o lançamento da campanha.
Plano nacional
Recentemente, o governo federal lançou o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, composto por ações imediatas e estruturantes, envolvendo a participação de dez ministérios e órgãos do governo federal, estados e municípios, além da sociedade civil. Serão investidos, apenas este ano, R$ 410 milhões em ações de saúde, assistência e prevenção. Com ele, o Ministério da Saúde pretende reforçar a ampliação da rede de assistência aos usuários de crack e dobrar, até o final deste ano, o número de leitos nos hospitais gerais para receber dependentes químicos, passando dos atuais 2,5 mil para cinco mil. Para isso, o investimento deve chegar a R$ 180 milhões.
Também está previsto no plano a transformação de 110 Caps-AD, em municípios com mais de 250 mil habitantes, para CAPS-III, que têm funcionamento 24 horas por dia e oito leitos em cada um para internações de curta duração e maior capacidade de atendimento ambulatorial e procedimentos de desintoxicações leves.
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